“A globalização e liberalização, como motores do crescimento económico e o desenvolvimento dos países, não reduziram as desigualdades e a pobreza nas últimas décadas”
in “Flat World, Big Gaps” - Jomo Sundaram/Jacques Baudot (ONU)
Há dias, numa pequena discussão no Facebook, suscitada pelo comentário de um cidadão que se proclama cristão evangélico e ao mesmo tempo “liberal de direita” e em que defendia as supostas virtudes do neo-liberalismo económico, defendi que aquela corrente ideológica é, na minha óptica, anti-bíblica e demoníaca (no sentido de que tudo o que fere directamente a Palavra de Deus procede invariavelmente de origem maligna).
E reafirmo a minha convicção.
Sem partirmos para uma análise profunda desta teoria económica pois não é essa, nem de longe nem de perto, a nossa intenção, convém, todavia, e de um modo breve e simplificado, perceber do que falamos:
A partir da década de 60 do Séc. XX “neo-liberalismo passou a significar a doutrina económica que defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em sectores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo. (…)
A mais recente onda liberalizante, que ficou conhecida como neo-liberalismo, teve seu início com a queda do muro de Berlim. Foi promovida pelo FMI, por economistas liberais como Milton Friedman, por seguidores da Escola de Chicago, entre outros, sendo por eles apregoada como a solução que resolveria parte dos problemas económicos mundiais, reduzindo a pobreza e acelerando o desenvolvimento global.(…)
As políticas liberais adoptadas não trouxeram ganhos significativos para a melhoria da distribuição do rendimento. Pelo contrário: "A desigualdade no rendimento per capita aumentou em vários países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico) durante essas duas décadas, o que sugere que a desregulação dos mercados teve como resultado uma maior concentração do poder económico."
Supreendentemente, a liberalização do fluxo de capitais financeiros internacionais, que era apontada como uma maneira segura de fazer os capitais jorrarem dos países ricos para irem irrigar as economias dos países pobres, deles sedentos, funcionou exactamente ao contrário.
O fluxo de dinheiro inverteu-se, e os capitais fugiram dos países mais pobres, indo para os mais ricos: "Houve uma tremenda liberalização financeira e pensava-se que o fluxo de capital iria dos países ricos para os pobres, mas ocorreu o contrário", (Jomo Sundaram)” (Fonte: Wikipedia com as necessárias adaptações ortográficas para Português. Destacados nossos)
Refira-se que a Escola Austríaca do liberalismo defende que nenhum país conseguiu até hoje aplicar verdadeiramente as ideias liberais clássicas e que o “neo-liberalismo” na prática é um fracasso.
O Cristianismo, sabêmo-lo sobejamente, não é uma teoria (muito menos económica), uma ideologia ou uma mera corrente de opinião.
O Cristianismo transcende essas classificações porque é uma vivência global e algo de transversal a todas as áreas da vida e pensamento dos seus seguidores. Aliás, desde logo, o verdadeiro Cristianismo não tem, verdadeiramente, seguidores. Aqueles que se apelidam de seguidores do Cristianismo poderão ser religiosos, estudiosos, adeptos mas não Cristãos. Um cristão é um discípulo. E o discipulado implica compromisso. Um cristão está forçosamente comprometido com Cristo. Não apenas com as ideias que Cristo defendeu e difundiu, não apenas com o seu posicionamento ideológico mas com o seu exemplo de vida e, mais ainda, com a Sua própria Vida. É um imitador de Cristo na feliz formulação de Tomás de Kempis (e que o apóstolo Paulo já indirectamente sugeria em 1 Coríntios 11:1).
Sabemos que a dicotomia direita/esquerda está historicamente datada e hoje em dia já tem pouca actualidade em face das novas realidades da globalização.
Mas sabemos também que permanece no nosso espírito a ideia básica que presidiu àquela distinção e se ainda hoje as usamos para nos definirmos político-ideologicamente é porque, bem lá no fundo, tem uma utilidade, talvez já só instrumental, mas acaba por assumir um papel de simplificação do nosso posicionamento político porque, apesar de tudo, não deixámos de lado o que subjaz àquela dicotomia e a importância que lhe damos, permanece.
Assim quando alguém se proclama de “liberal de direita” todos (ou quase todos) sabemos aquilo que o autor do epíteto quer dizer e qual o tipo de pensamento (e prática!) que subscreve.
Da mesma forma que quando me afirmo (e esta observação não é apenas retórica) de esquerda (mais propriamente "Conservador de Esquerda") também não haverá grandes dúvidas do que pretendo dizer.
Mas então porque é que ser “liberal de direita” é, a meu ver, anti-bíblico?
[A expressão aparentemente redundante "liberal de direita" (não consigo imaginar um liberal de esquerda!) parece-me ser afinal enfática e querer dizer, provavelmente, ultra-liberal.]
A resposta afigura-se-me bastante simples. Porque contraria todo a mensagem evangélica. Porque do mesmo modo que não é possível conciliar amor e ódio, benção e maldição, também não se pode conjugar amor ao próximo e supremacia/opressão económica sobre esse mesmo próximo.
Não vou aqui desenrolar argumentos de hermenêutica bíblica ou considerações próprias da apologética.
Não é essa a minha intenção nem possuo credenciais na área teológica para poder ter autoridade na matéria. Mas de uma breve análise ainda que leiga de alguns textos bíblicos não vejo como se possa defender uma tese neo-liberal e afirmar-se simultaneamente a qualidade de cristão.
Eis uma pequena selecção subjectiva de alguns desses textos:
“Jesus disse ainda: «Quando o Filho do Homem vier na sua glória, com todos os seus anjos, estará sentado no seu trono majestoso e todos os povos da Terra se juntarão diante dele. Então ele há-de separá-los uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas das cabras.
Porá as ovelhas à sua direita e as cabras à sua esquerda.
E dirá aos que estiverem à sua direita: “Venham, abençoados de meu Pai! Venham receber por herança o reino que está preparado desde a criação do mundo.
Pois eu tive fome e deram-me de comer, tive sede e deram-me de beber, era peregrino e hospedaram-me, andava nu e deram-me que vestir, estive doente e visitaram-me, estive na cadeia e foram-me visitar.”
Então os justos hão-de replicar: “Senhor, quando é que nós te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber?
Quando é que nós te vimos como um peregrino e te hospedámos, ou nu e te demos que vestir?
Quando é que nós te vimos doente ou na cadeia e te fomos visitar?”
E o rei lhes responderá: “Saibam que todas as vezes que fizeram isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o fizeram.”
Depois dirá aos que estiverem à sua esquerda: “Afastem-se de mim, malditos! Vão para fogo eterno que foi preparado para o Diabo e para os seus anjos!
Pois tive fome e não me deram de comer, tive sede e não me deram de beber,
era peregrino e não me deram hospitalidade, andava nu e não me deram que vestir, estive doente e na cadeia e não me visitaram.”
Estes hão-de perguntar também: “Senhor, quando foi que nós te vimos com fome, ou com sede, ou peregrino, ou nu, ou doente, ou na cadeia e não cuidámos de ti?”
O rei então lhes há-de responder: “Saibam também que todas as vezes que deixaram de fazer isso a um destes meus irmãos mais pequeninos, foi a mim que o deixaram de fazer.”
Estes serão enviados para o castigo eterno, enquanto os que fizeram o bem irão para a vida eterna.» (Mateus 25:31-46)
“Todos participavam fielmente no ensino dos apóstolos, na união fraterna, no partir do pão e nas orações.
Toda a gente andava impressionada com o que se estava a passar, porque Deus fazia muitos sinais milagrosos e maravilhas por meio dos apóstolos.
Os crentes viviam unidos e punham em comum tudo o que possuíam.
Vendiam as suas propriedades assim como outros bens e dividiam o dinheiro entre todos, de acordo com as necessidades de cada um.
Reuniam-se diariamente no templo. Partiam o pão ora numa casa ora noutra, comendo juntos com alegria e simplicidade de coração.
Davam louvores a Deus e tinham a simpatia de todo o povo. Cada dia que passava, o Senhor aumentava o número dos que recebiam a salvação. (Actos 2: 42-47)
“Não faltes à justiça, quando tiveres que defender a demanda dum pobre.” Êxodo 23:6
“Avisa os que são ricos em bens deste mundo para que não se envaideçam nem ponham a sua esperança numa riqueza que não é segura. Confiem antes em Deus que põe todas as coisas à nossa disposição para nossa satisfação.” I Timóteo 6:17
“Imaginem que algum irmão ou irmã, não tem nada que vestir e lhe falta o necessário para comer, cada dia. Poderão dizer-lhes: «Vão em paz! Hão-de encontrar com que se aquecer e matar a fome!»
Mas se não lhes dão aquilo de que eles precisam, de que valem essas boas palavras?” (Tiago 2: 15,16)
Meus filhos, não amemos com palavras e discursos, mas com acções e com verdade. (1 João 3:18)
De facto, toda a lei de Deus se resume num só mandamento: Ama o teu próximo como a ti mesmo. (Gálatas 5:14)
“O meu mandamento é este: amem-se uns aos outros como eu sempre vos amei. Não há maior amor do que dar a vida por aqueles a quem se ama.” (João 15:12,13)
Reconheço não ter capacidade intelectual para entender como se concilia, enquanto cristão, um amor sacrificial e absolutamente genuíno e incondicional (ágape) como o descrito, vivido e ensinado por Jesus Cristo e uma doutrina que conduz a uma prática de exploração indigna, injusta e éticamente indefensável dos economicamente mais poderosos sobre os mais fracos, mais pobres e desprotegidos. Sejam quais forem os argumentos utilizados. Porque, como diz o povo na sua habitual e proverbial razão: contra factos não há argumentos.
Até poderá ser que seja, mas até prova inequívoca em contrário, não creio que o defeito seja meu.
Abel José Varandas
2012.09.14