08 setembro 2010
O EVANGELHO DA RIQUEZA por David Brooks (Jornalista)
As pessoas nos EUA não vão renunciar ao materialismo, que está no centro da sua identidade nacional. Mas o país está a redefinir os estilos de vida que são social e moralmente aceitáveis
Na primeira década do século XXI pode bem vir a ser conhecida como a grande era do espaço vital. Nesses anos, as casas novas tinham pés-direitos de 6 metros e era preciso inventar formas de arte inteiramente novas para encher os hectares extra de parede.
As pessoas compravam veículos tipo bolbo, como Hummers e Suburbans. A regra era que quanto mais pequena fosse a mulher, maior seria o carro. Daí verem-se senhoras de 40 kg, de equipamento branco de ténis a rigor, ao volante de verdadeiros camiões de quatro toneladas, com espaço suficiente acima da cabeça para poderem levar às cavalitas a parceira do jogo de pares. Quando os arqueólogos do futuro escavarem os vestígios dessa época, concluirão que algures, por volta de 1996, os EUA foram vítimas de uma onda de claustrofobia e que se arruinaram na busca de algum alívio para esse mal.
Só que essa conjuntura económica fez puf! e as normas sociais mudaram entretanto. O hipergrande parece agora vagamente ridículo. E também os valores mudaram.
Presentemente, a taxa de poupança aumentou e os publicitários inteligentes apostam na contenção e na respeitabilidade próprias das pequenas localidades. O movimento de protesto Tea Party é militantemente burguês. Recorre a meios tipo Abbie Hoffman para regressar a fins tipo Norman Rockwell.
Nos próximos anos de crescimento lento, as pessoas não deixarão de estabelecer novas normas e de procurar maneiras não económicas de encontrar significado. Uma das figuras mais interessantes desse novo esforço de redimensionamento é David Platt.
Platt obteve dois mestrados e um doutoramento no Seminário Teológico Baptista de Nova Orleães. Aos 26 anos, foi contratado para chefiar uma igreja suburbana com 4 300 pessoas em Birmingham (Alabama), tornando-se o mais jovem megadirigente religioso dos Estados Unidos e talvez da América. Platt começou a sentir-se cada vez menos à vontade no papel em que se tinha deixado enredar e escreveu sobre isso num livro recente, intitulado "Radical: Taking Back Your Faith From the American Dream", que aborda muitos dos temas que, nos últimos anos, têm vindo a circular nos 20 e tantos círculos evangélicos. O primeiro alvo de Platt é a própria mega-igreja. Nos EUA foram construídos palácios de culto de vários milhões de dólares, afirma. Estes tornaram-se como grupos empresariais, disputando quotas de mercado por meio da oferta de centros sociais, programas de cuidados infantis, entretenimento de primeira qualidade e de um cristianismo de comodidade e de grande consumo. Jesus, frisa Platt, não facilitou a vida aos seus seguidores. Criou uma mini-igreja, não um mega-empório. Hoje em dia, porém, os orçamentos das obras de construção civil são gigantescos quando comparados aos das obras de caridade e Jesus é representado como um suburbano fixe e genial. "Quando nos reunimos na nossa igreja (edifício) para cantar e erguer as mãos em oração, podemos até não estar a adorar o Jesus da Bíblia. Podemos estar, de facto, a adorar-nos a nós próprios."
A seguir, Platt visa o sonho americano. Quando os europeus começaram a instalar-se, viram a abundância natural do novo continente e chegaram a duas conclusões: poderia ser aqui concretizado o plano de Deus e poderiam chegar a ser francamente ricos enquanto O ajudavam a fazê-lo. Esta noção evoluiu para a de que temos dois chamamentos interdependentes: construir neste mundo e preparar-nos para o próximo.
A tensão entre o Bom e a Abundância, entre Deus e Mamon, tornou-se nuclear na vida dos Estados Unidos, desencadeando potentes energias e explicando o porquê de os EUA serem simultaneamente tão religiosos e tão materialistas. Aí, as pessoas são materialistas morais e espiritualistas que trabalham a materialidade. Platt pertence à tradição dos que não acreditam que estas duas esferas sejam conciliáveis. O mundo material é demasiado destruidor da alma. "O sonho americano difere radicalmente do chamamento de Jesus e da essência dos Evangelhos", defende. O sonho americano dá ênfase ao engrandecimento e crescimento pessoais. As nossas capacidades são os nossos melhores trunfos. Mas os Evangelhos rejeitam a ênfase na própria pessoa: "Na verdade, Deus gosta de exaltar a nossa incapacidade". O sonho americano privilegia a ascensão sócio-económica, mas "o êxito, no Reino de Deus, passa pelo despojamento, não pelo engrandecimento." Platt apela aos seus leitores no sentido de usarem de contenção no estilo de vida. Deve viver-se como se se ganhasse 50 000 dólares por ano e doar tudo o que for acima disso, propõe. As pessoas deveriam consagrar um ano a entregar¬se a Deus, mudar-se para África ou para uma parte do mundo vitimada pela pobreza, e evangelizar.
Os argumentos de Platt são velhos, mas surgem num momento pós-excessos, quando as atitudes para com a vida material estão desvalorizadas. O livro dele tocou um nervo sensível. O seu tomo sobre a renúncia vende-se como pãezinhos quentes. As críticas literárias são calorosas. Os leitores, em locais como a Convenção Baptista do Sul estão a apelar aos cidadãos para que renunciem ao sonho americano.
Duvido que estejamos prestes a assistir a um descartar colectivo de iPods. As pessoas nos EUA não vão renunciar ao materialismo moral que está no cerne da sua identidade nacional. Mas o país está, claramente, a redefinir que tipo de estilo de vida é social e moralmente aceitável e quais os que o não são. E pessoas como Platt são fundamentais para esse processo.
Os Estados Unidos tiveram em tempos um evangelho da riqueza: um código de contenção moldado por muita gente, desde Jonathan Edwards a Benjamin Franklin e a Andrew Carnegie. Esse código foi concebido para ajudar o país a lidar com a sua própria afluência. Desgastou-se e, nos próximos anos, será redefinido.
Exclusivo i/The New York Times
- in Jornal i de 8 de Setembro de 2010